Todas as cadeiras do pequeno Teatro Marília, em Belo Horizonte, estavam ocupadas quando Zélia Duncan, 54, estreou na cidade, em 2012, o espetáculo “Totatiando”, em homenagem a Luiz Tatit. Ao interpretar a música “Dodói”, parceria de Tatit e Itamar Assumpção (1949-2003), a cantora não resistiu. “No universo do teatro, estou autorizada a não controlar esse tipo de emoção diante do público. Não conseguiria se não fosse verdadeiro, até porque não tenho essa técnica”, observa Zélia, explicando as lágrimas daquela ocasião.
“Dodói” foi lançada por Tatit em 2007. A canção, uma das últimas de Itamar, não chegou a ser gravada pelo autor dos melancólicos versos, que descreviam sua agonia na batalha contra o câncer de intestino: “Eu ando tão dodói/ Mas tão dodói/ Que quando ando dói/ Quando não ando dói/ Meu corpo todo dói/ (...) Até meu dom dói/ Pois quando canto/ Não importa o tom dói”. A doença levou Itamar em 2003, impedindo que nesta sexta (13) um dos ícones da Vanguarda Paulista completasse 70 anos.
Opereta
A efeméride estimulou uma série de celebrações à obra de Itamar. A dramaturga, diretora e atriz belo-horizontina Grace ô, 39, promete estrear em São Paulo, no mês de novembro, uma opereta baseada na trajetória do cantor. Além de dirigir, ela assina a dramaturgia com Anelis Assumpção, 39, filha do homenageado.
“Nós estamos preparando um trabalho que vai fundir a biografia com as músicas do Itamar. Anelis vai dividir o palco com outros músicos e atores, entre eles o Fabrício Boliveira. Itamar era um cara superperformático, seus shows eram verdadeiras obras teatrais. Então, nós estamos explorando esse lado”, declarou Grace em entrevista ao repórter Carlos Andrei Siquara, em julho. Até o momento, a montagem foi batizada de “Itamares”.
A própria Anelis, que, ao lado de sua mãe, Elizena, detém os direitos do espólio de Itamar, está à frente de outras iniciativas. Por exemplo, os óculos escuros com armações coloridas e em diferentes formatos utilizados por Itamar inspiraram uma coleção de roupas que tem o apoio de uma marca contemporânea de São Paulo. As novidades prosseguem com a edição de cinco livros infantis escritos por Itamar que permaneciam inéditos.
Para completar, os dois primeiros álbuns da carreira do músico ganharam reedições em vinil, tanto “Beleléu, Leléu, Eu” (1980) quanto “Às Próprias Custas S. A.” (1981), que trazia em seu título uma das muitas críticas e ironias lançadas por Itamar em suas composições. “O meu pai foi um pioneiro da música independente, numa época em que isso não era comum. Todo esse cenário de hoje, inclusive do rap, deve muito às lutas que ele travou”, observa Anelis, que se ressente da falta de reconhecimento ao legado do pai.
“A música brasileira é ingrata”, reclama Anelis. Para tentar amenizar os efeitos desse desprezo à memória, ela prepara um site, em formato de museu virtual, com todo o acervo do progenitor. “Itamar é um documento artístico e cultural do país”, define Anelis.
História
Companheiro de geração, Arrigo Barnabé, 67, não apenas conviveu com Itamar, que tocou e participou de arranjos do disco “Clara Crocodilo” (1980), como morou, durante mais de dois anos, com o amigo em São Paulo. “Antes de estourar com a Vanguarda Paulista e ficar conhecido, a gente fez muitos shows juntos”, conta.
Arrigo foi um dos músicos mais próximos de Itamar. Em dueto, eles gravaram “Já Deu pra Sentir”, que, ao lado de “Noite Torta”, o entrevistado considera “o auge de Itamar na composição”. “As duas são muito bem-resolvidas em termos de letra e canção”, elogia Arrigo. Os dois se conheceram em Londrina, no interior do Paraná.
Da plateia, Arrigo se impressionou com a performance de Itamar no palco, que interpretava Tiradentes numa peça idealizada a partir da histórica “Arena Conta Zumbi”. “Ele é um cara que faz muita falta”, lamenta Arrigo, que em 2007 compôs uma missa para Itamar. “O senso de humor dele era agudo. O Itamar fazia imitações das pessoas, como se fossem caricaturas”, recorda.
Para o crítico musical Hugo Sukman, “a música de Itamar explode originalidade”. “Ele revela um mundo que, por incrível que pareça, dada a riqueza da música brasileira, não havia sido mostrado”, aponta. Segundo Sukman, a produção de Itamar se fia nas experiências do “negro urbano, de classe média”. “Ele faz isso dentro da tradição da canção brasileira”, diz. A denúncia ao racismo, que surge em “Cabelo Duro”, “Pretobras” e outras, é “feita com altivez”. “Itamar é a voz de uma população que ascendeu socialmente e chegou à universidade. Ele fala de igual para igual. Nesse sentido, o comparo ao Gilberto Gil”, observa Sukman.